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  • XLI Annus Dies: Do suposto fracasso

    Não fracassaste, como Jesus também não fracassou na cruz. Ânimo!... Continua contra a corrente, protegido pelo Coração Materno e Puríssimo da Senhora: Sancta Maria, refugium nostrum et virtus! (ESCRIVÁ, Josemaría. Via Sacra. XII Estação)

  • O Aristóteles de Olavo de Carvalho

    Aristóteles continua sendo o marco de referência na filosofia ocidental, especialmente por conta de sua inegável (apesar de alguns terem menosprezado) coerência interna no conjunto de sua obra.

  • O Quinze, de Rachel de Queiroz

    A própria desolação do ser humano acaba se transformando em uma fonte quase inesgotável de inspiração a escritores como Rachel de Queiroz. Livros como O Quinze, um drama situado em um período de seca extrema no sertão, não somente revela a desenvoltura de um escritor, mas acaba servindo de poesia documental daquilo que realmente muitos homens e mulheres sentiram na pele e nos ossos, com toda a crueza da realidade impiedosa. A escritora Rachel de Queiroz traz coisas importantes neste drama, que podem passar como simples histórias tristes que nem sequer temos a dimensão, mas que podem nos fazer apontar algumas coisas interessantes sobre a vida universal do ser humano. Como é o exemplo de dona Cordulina, esposa do personagem Chico Bento, que no derradeiro caminho de retirante motivado pela desventurosa seca sertaneja, suporta a carga das dores diante de um filho morto por envenenamento, ao comer motivado pela fome, uma raiz imprópria ao estômago já maltratado. Por suportar a tristeza de um filho desaparecido junto das estradas empoeiradas, um filho do qual não se teve mais notícias. Por fim, sem saber que os filhos restantes sobreviveriam às desventuras da família, tenta oferecer ao filho mais novo, a possibilidade da vida junto de outra família, e assim, doa o próprio filho à outra alma feminina, que julgou capaz de cuidá-lo. Em Cordulina podemos enxergar a visão de uma mulher decidida pela família, mas forte diante diante das situações que exigiram decisões importantes, ou para o bem dela mesma, ou para o bem da prole. Mas além da mulher de Chico Bento, também devemos citar Conceição, uma história diferente da de Cordulina. Conceição não sofreu os males dos retirantes pela seca, mas sofreu, em certa maneira, pela “seca” existencial. Sua vida, mesmo educada em nível maior que os seus conhecidos, não lhe garantiam uma realização familiar como a de Cordulina, casada e com filhos, ou de Lourdinha, irmã de Vicente - primo de Conceição, mas que gozava de afeições carinhosas da mesma -. Conceição seria aquela moça que muitos, logo de cara, chamariam de “santinha”, mas que na realidade buscava não repreender os próprios impulsos de solidariedade, por meio de quaisquer artifícios ocos de valores morais e éticos, tipo estes que revelam somente o egoísmo que em certa medida, todos possuem. Conceição também nos transparece, especialmente diante da sua vontade em educar-se e manter sua habitual feição pela leitura, o quanto a mesma mulher consegue elevar e aprofundar seu espírito através deste exercício inegavelmente louvável. Para muitos poderia parecer dicotômico, num ambiente de seca e pobreza, uma mulher valorizar a leitura. Pois a escritora Rachel de Queiroz consegue nos orientar neste sentido, nos ajudando a eliminar imagens erradas acerca de todos os que vivem semelhante à condição geográfica. Viver em ambiente de seca e pobreza, não resulta, consequentemente, em analfabetismo cultural. A obra O Quinze merece de todos os leitores maior atenção, mesmo que muitos ainda possam afirmar ser apenas uma narração simples de poucos personagens. Aqui destaco apenas duas personagens deste drama, duas mulheres, que em suas pequenas atitudes, diante de situações diferentes e decisivas, revelam a fortaleza que cada ser humano constrói em si mesmo. Artigo publicado no informativo literário "O Leitor", de março de 2023.

  • Iracema e o romance brasileiro

    É reconhecido de modo consensual que o estilo de romance na literatura brasileira têm seu início com a obra Iracema, de José de Alencar, publicada no ano de 1865. A obra de Alencar traz de maneira inédita ao seu tempo, a narração de um verdadeiro drama sentimental entre uma nativa destas terras brasileiras e um estrangeiro no período da colonização portuguesa, o “guerreiro branco” Martin. Dentre as características que emergem desta obra clássica da literatura brasileira, tribos indígenas, algo que para o leitor moderno de hoje parecerá monótono e cansativo, mas que possui valor enquanto que demonstra não somente que autor investiu tempo na confecção deste drama, mas que apresenta uma verdadeira prova de universalidade atemporal da relação humana, que perpassa os tempos, os povos e as línguas. Esta obra apresenta-se como uma “lenda” do surgimento da região cearense de nosso país. Quase ao término do romance, o mesmo autor deixa claro sua intenção quanto ao romance em sua pretensa fundação do Ceará: O primeiro cearense, ainda no berço, emigrava da terra da pátria. Havia aí a predestinação de uma raça? (cap. XXXII), narrando neste trecho, a despedida de Martin com o filho de poucos meses que tivera com a índia Iracema. Este romance não somente tenta trazer as características de um tempo de colonização e edificação de um país, mas também contribui hoje para a clarificação de uma necessária observação para além da mera trama que o autor constrói em sua obra publicada. O romantismo pode não somente ser entretenimento e preenchimento de nossa satisfação emocional, mas também reflexão sobre nossa própria história em construção Texto originalmente publicado na 11ª edição do informativo literário "O Leitor", disponível em www.oleitor.info .

  • "A Falência" no ouro e na moral

    Foi-me uma grata surpresa a leitura do livro A Falência (1901), da escritora Júlia Lopes de Almeida, publicado no início do século XX. Um romance situado numa época de muita rentabilidade para os comerciantes de café no Rio de Janeiro, e onde a riqueza cresce facilmente e como que autonomamente, também os mais perversos vícios humanos florescem, esperando a hora certa de modificar drasticamente a rotina feliz e opulenta destes que cegam-se aos perigos por causa da inebriante riqueza. A família Theodoro, era uma família rica no comércio cafeeiro, e demonstravam isso com facilidade através das opulências que faziam-se desfilar diante da sociedade local, especialmente através das luxuosas roupas de dona Camila, esposa de Francisco Theodoro, e das filhas deste casal, a menina Ruth e as gêmeas, Lia e Raquel. Pois é justamente neste cenário de quase fastio pela facilidade do dinheiro que seu Francisco Theodoro fazia jorrar na casa da família, que também se favoreceu os sorrateiros vícios humanos, como o de dona Camila que facilmente procurou noutro homem sensações românticas que não queria mais buscar em seu marido, talvez pelo jeito rude deste, fruto do árduo trabalho que o fez chegar até onde se encontrava na sociedade. Foi nos olhares de um médico, Gervásio, que Camila alimentou a traição moral, o vício da luxúria fortificava-se em seu espírito, cegando-a para a virtude familiar e especialmente considerando sua missão materna de exemplo às filhas ainda em fase de crescimento. Claro que este doutor Gervásio também cedia aos braços da luxúria e sensualidade, de quem já se deleitara outras vezes de modos diferentes, como ao findar do romance se ficará sabendo. A escritora, talvez de propósito ou não, coloca este doutor como agnóstico e cético quanto a qualquer manifestação fora de seu suposto arcabouço científico, e isto parece ser uma característica marcante de muitas “vítimas” da luxúria e da sensualidade. O senhor Theodoro não santifica-se, apesar de seu fim lamentável, pois sua conduta apaixonada pela riqueza em si, o fez cegar a si e também sua casa ao que realmente poderia edificar-se numa família feliz e sem dificuldades. Sua vaidade estava na própria vida sofrida e persistente que o fez galgar degraus de sucesso nos negócios, o que despontou numa existência apenas significada pela riqueza, o que se revelará sua ruína final. Acredito que já disse o suficiente sobre este romance, mas vale a pena ressaltar que de tudo o que lemos, mesmo considerando a posição intelectual do escritor, deveria-se esperar de nós uma compreensão sensata, destacado a única coisa que une escritor e leitor, independente do tempo entre ambos, a existência manifestada, ou apenas “o ato de que vivemos com outros”. A escritora Júlia Lopes de Almeida possui outras obras a serem descobertas e lidas, e aqui uno-me a todos os que já a tem como escritora digna de lembrança e louvor no universo literário brasileiro.

  • O singular Lovecraft

    Mesmo com muita bagagem como leitor de literatura, sempre é possível nos surpreender com algum novo escritor que fugia do conhecimento. Afinal, penso ser impossível que um ser humano possa ler ao menos uma obra de todos os escritores passados e contemporâneos, o que fazemos é o possível, dentro da razoabilidade. Graças a um de meus sobrinhos, chegou em minhas mãos alguns contos de H. P. Lovecraft (LOVECRAFT, H.P. Contos, volume I. Ed. Martin Claret. São Paulo, 2017), um nome totalmente desconhecido para mim. Conhecendo os comentários preliminares a este escritor, logo imaginei se tratar de algo parecido com Edgar Alan Poe, ou algo semelhante a André Vianco, mas parece que minha impressão estava equivocada, pois Lovecraft acabou revelando-me um estilo de terror que em nada assemelha-se a cenas fantasmagóricas ou de tremendo susto, muito menos a carnificinas detalhadamente narradas em alguns parágrafos. Este escritor apresentou-me um estilo de terror suspenso em narrações otimizadas, muitas vezes sem muito detalhamento, o que nos leva logo a ações objetivas que os personagens realizaram. Este suspense que revela-se, quase sempre no último parágrafo, pareceu-me leve, algo que faz o leitor calmamente ir digerindo um desfecho impactante, mas sem aquele flash de elevação de adrenalina que dura poucos segundos, mas revelando um desfecho que assemelha-se mais a um desenrolar policial “a lá” Sherlock Holmes, não pela dedução lógica dos fatos, mas pela narrativa lenta e gradual dos eventos. Acredito que Lovecraft figure já entre os maiores escritores de terror/suspense na literatura, apesar de até pouco tempo minha infeliz ignorância de sua existência. De tudo o que li dele até este momento, preciso destacar um conto em especial. O conto “Ar Frio” revela uma tendência em Lovecraft, que parece tentar associar a técnica e tudo o que possa ser mais científico com a sempre presente busca do ser humano por vida eterna, ou, em outras palavras, fugir da morte. Neste conto um homem consegue um emprego em Nova York em uma revista e se vê de mudança para lá, ao que se hospeda num casarão de quatro andares, um casarão muito antigo, administrado pela Sra. Herrero, uma espanhola. No quarto acima daquele do jovem que mudará a pouco, hospedava-se o Dr. Muñoz, médico que parecia muito respeitável e discreto. Acabou que nosso jovem teve contato com o médico e ele ficou moralmente devendo ajuda, e acabou se tornando o ajudante do Dr. Muñoz. Revelou-se que o médico possuía alguma doença que era freada somente com uma temperatura muito baixa, por isso o médico criou um sistema de refrigeração de seu apartamento. No desenrolar do conto, acaba-se por descobrir que o médico era resultado de uma experiência sua, numa tentativa de reanimação do corpo depois da morte. Acabou-se que por defeito do sistema de refrigeração, o médico derreteu - literalmente - e a verdade veio à tona. Por princípio nunca dou muitos detalhes do final da obra, neste caso do conto, mas o bom leitor já poderá imaginar algo com o pouco que ofereci deste conto, que como disse revela também está ansiosa vontade dos homens em retardar o “único fim inevitável”, parafraseando o eterno João Grilo de Suassuna. Que Lovecraft possa admirar muitos leitores, assim como admirou a mim com seu estilo singular de terror.

  • Sobre o triste caso de Dom Casmurro e Capitu

    A vida humana não somente reflete-se em nossas memórias e em percepções alheias, mas muitas vezes registra-se com bastante riqueza de detalhes na literatura, muito por conta da própria habilidade do escritor. Muitas obras literárias nos oferecem um material abundante para refletir e perscrutar as minúcias do comportamento humano, e esta arte não invalida-se com o tempo, visto que obras de décadas, séculos e até milênios possuem os mesmos resultados quando a perspectiva é a vida humana. Hoje trago à reflexão o conhecido escritor Machado de Assis que possui algumas obras que servem-nos para este fim que até aqui tenho comentado. Uma delas é a obra Dom Casmurro, uma narração em primeira pessoa do próprio personagem que traz ao leitor uma autobiografia com todas as lembranças possíveis e convenientes ao senhor Bentinho, diminutivo de infância do mais tarde nomeado senhor Dom Casmurro, este por sua suposta “carrancudice”. Supondo que já é conhecida a obra citada, gostaria de destacar a questão relevante. Trata-se de um olhar mais cauteloso e profundo à motivação do senhor Dom Casmurro que o levou ao término de um casamento tão desejado desde a meninice e para o qual trabalhou tanto a fim de desvencilhar-se de uma promessa de sua mãe, que o “condenava” ao celibato sacerdotal. Depois de casados, passados alguns anos, Casmurro e Capitu viram nascer seu primogênito, um menino ao qual deram-lhe o nome de Ezequiel. Com o passar dos anos, assistindo o crescimento deste menino que devotava muito amor ao pai, Casmurro colecionou alguns acontecimentos, como a morte da mãe e do amigo Escobar, que fora seu colega de seminário e que após sua saída deste internato, viera habitar perto de Casmurro e Capitu, tendo casado coincidentemente com uma amiga de Capitu, Sancha. A esposa de Escobar já havia descoberto e perdoado alguns deslizes de Escobar com outras mulheres, e viviam aparentemente bem, tendo uma filha alguns meses mais velha que Ezequiel. Estes dois casais viveram períodos de paz e harmonia, como bons amigos. Mas tudo começa a mudar quando uma percepção começa a crescer na mente de Casmurro, a de que seu filho possui algumas características que não necessariamente são as mesmas que de sua mãe e especialmente de seu pai. Começa então a persistir e crescer uma sombra acerca de seu filho, que aos olhos de Casmurro parece-se cada vez menos com ele e mais com Escobar, seu antigo amigo de seminário. Acontece que essa percepção começa a ganhar força de uma possível traição de sua esposa, percepção esta que começa a crescer logo após a morte de Escobar, algo muito dramático para Casmurro que tinha Escobar como um verdadeiro irmão. Aos poucos esta sombra começa a tomar conta de si, do seu tempo, devorando-lhe inteiramente como um parasita esfomeado. Logo começa a buscar na memória momentos em que provavelmente sua esposa teria negado sua presença como subterfúgio para encontros amorosos com Escobar. Sua mente começa a lembrar de datas, de momentos em que possivelmente poderiam ser momentos de oportuno encontro sem o perigo de um flagrante deste crime. Assim, aos poucos cresce a solução derrdeira do suicídio, pensa em tomar veneno para pôr fim a sua vida atualmente masserada pela dúvida da traição, mesmo sem provas. Muitos defendem que Capitu tivesse realmente traído Dom Casmurro, especialmente porque na obra, ela não chega a negar claramente tal hipótese, apenas aceitando a decisão do marido em separar-se dela. Mas ainda é difícil afirmar categoricamente e sem erro que a traição aconteceu. Preciso lembrar que toda a narração acontece nas palavras e percepção de Dom Casmurro, não se tratando de um depoimento livre de paixão e conveniência. Pelo que parece-me mais plausível a hipótese de uma alienação dos fatos por parte de Casmurro, algo totalmente possível a qualquer pessoa que diante de choques emocionais relevantes em sua vida, começa a sentir a pressão por definir algo sem muitas evidências visíveis e materiais. Este estado cognoscível-emocional de Casmurro pode ter ajudado a adulterar a própria realidade em que vivia, algo que o fez tomar decisões de profundo impacto na vida de sua esposa e filho. Enfim, não consigo juntar-me aos que acreditam piamente que houve traição, pois Machado de Assis nos deixa evidências somente deste estado cognoscível-emocional de Dom Casmurro, mais do que possíveis provas de traição de Capitu. Parece que Machado de Assis pode nos lembrar mais uma vez que a razão humana anda junto com um saudável estado emocional.

  • Ensaio sobre a Cegueria

    José Saramago, escritor português, ganhador de uma das edições do Prêmio Nobel de Literatura, escreveu uma obra que revela a sua visão da humanidade em todas as dimensões. A obra Ensaio sobre a Cegueira traz uma história fantástica em seu início, mas que revela ao passar as páginas a verdadeira e crua realidade que o livro deste escritor português quer nos desnudar. Para muitos esta história surreal de Saramago nos leva a derramar sentimentos variados por cima de cada página à medida que desenrola-se a desventurosa saga destes indivíduos acometidos por misteriosa cegueira inaudita. Sem desejar detalhar a trama, gostaria de hoje apenas comentar esta facilidade de homens como Saramago em transportar para as linhas escritas a provocação mais desconfortável que os leitores poderiam esperar. Esta obra que ora cito, assim como tantas outras deste escritor, revelam momentos de profunda provocação, momentos em que verdadeiramente desejamos parar de ler por não acreditar que tal coisa pudesse estar acontecendo. Ficou-me especialmente gravado na memória a animalidade que quase espontaneamente se criou no “manicômio” onde se reuniram todos os cegos acometidos do “mal-branco”, e especialmente o momento em que um grupo tão cruel quanto os que os trancaram neste verdadeiro manicômio, usurparam o direito de todos por comida e as vendiam por qualquer coisa de valor, chegando a animalesca e sórdida imposição de favores sexuais das mulheres em troca de alimento. Neste momento, como se já nesta altura não se tivesse percebido a animalização do indivíduo humano, verifica-se a grande barbárie em que sempre a natureza humana pode chegar. O leitor facilmente perceberá como em uma vitrine a frente, onde poderia estar a passar as mais variadas atitudes desprezíveis do ser humano quando qualquer espécie de privação cai-lhe sobre a existência. O exemplo da fome parece ser claro no episódio que acabo de mencionar, mas a ausência inesperada de um sentido como o da visão, não poderia resultar em tamanho colapso da civilidade adquirida pela cultura humana após séculos de desenvolvimento racional acerca do próprio convívio social. Em Ensaio sobre a Cegueira, podemos encontrar muitos elementos de reflexão e discussão em torno da instabilidade que aparentemente só faz crescer na formação do ser humano, resultando em atitudes desproporcionais, escravocratas, imorais e animalescas sob as primeiras situações de privação e cerceamento. A atitude dos cegos enclausurados em um edifício, sem o menor suporte de quem os lá colocou, excetuando o fornecimento precário de alimento, já é primeira demonstração destas situações desproporcionais e irracionais, coisas que talvez já tenhamos vivenciado de alguma maneira em algumas crises sociais recentes. A facilidade com que os soldados atiraram para matar em indivíduos doentes, levanta a questão da subordinação a ordens sem consciência moral e baseadas no medo, tanto da hierarquia quanto da suposta ameaça sanitária. A questionável lei de sobrevivência que fez surgir o grupo criminoso de entre os cegos para arrecadar benefícios além da própria alimentação, impedindo que os demais cegos se alimentem com a comida destinada a eles, demonstra mais uma vez a frágil estrutura moral e humana com a qual lidamos quando o assunto é a grande massa da humanidade. Não creio que Saramago seja amado por todos, mas esta obra em específico deste escritor português, revela sua capacidade incrível em despertar no leitor os mais variados sentimentos em busca de uma possível reflexão sobre nós mesmos. Artigo publicado originalmente na 17ª edição do informativo mensal O Leitor, disponível em www.oleitor.info .

  • Estevão e a luva para a sua mão

    Em 1874 eram publicados os escritos de Machado de Assis que comporiam o livro A Mãe e a Luva, um pequeno romance que não esconde a desenvoltura e a genialidade deste escritor que praticamente elevou a literatura brasileira para um nível não atingido antes dele. Apesar de um curto romance, A Mão e a Luva traz um desenvolvimento interessantíssimo sobre o estudo de personalidade que os personagens carregam consigo e que pode desdobrar-se mais ainda quando os vemos como figuras de características sempre presentes nos indivíduos, independente do século. Este visão da personalidade dos personagens que Machado registra em sua obra parece-me que auxilia também o leitor a entender a profundidade do drama que o escritor desejou expressar que cada ator da cena vivenciou em seu romance, pois algumas vezes, o leitor pode não perceber a real profundidade do drama que o personagem vive e simplesmente passar os olhos pela narração como certa displicência. A literatura machadiana sempre me chamou muito a atenção pela riqueza dos dramas e diálogos, algo que sempre me faz pensar em outro escritor que também admiro pelas mesmas características, Fiódor Dostoiévski. O drama do personagem Estevão parece não ser o central na obra depois de algumas páginas, mas quando terminamos a leitura começamos a perceber que Machado começa com ele e termina com ele sua narração, e isto não me parece algo fortuito ou mero recurso literário. Na verdade, parece-me que a figura de Estevão, em sua apatia interna e falta de vigor moral e clareza racional, refém de um espírito suscetível a qualquer paixão rasa e sem fundamento, revela muito mais que simplesmente um “adoslecente abobado” que não amadureceu, revela a imagem de uma sociedade carente de fundamento, carente de formação interior e de firmeza moral. Estevão não é uma vítima de Guiomar, seu amor não correspondido, muito menos de Luís Alves, seu amigo que acabou por realizar o sonho que era de Estevão. Estevão é na realidade e ao final de todos os fatos, vítima da própria fraqueza, da própria cortina de fumaça alimentada pela debilidade de seu espírito que enxergava em alguém que nem conhecia direito uma grande paixão. A bela Guiomar, que para muitos leitores poderá parecer fria e sem piedade, não foi a causadora da ruína sentimental de Estevão e nem o fracasso da investida de Jorge, sobrinho de sua madrinha, com quem morava. Guiomar sim, parece-me ser vítima, e vítima de sua simples e pura natureza de pessoa sóbria, serena, sem excessos e sem intenções. Poderia dizer que se Guiomar teve culpa de algo, foi por ser submissa de modo excessivo aos sentimentos de sua madrinha, que por vezes parecia aprisionar-lhe numa redoma onde tudo devia ser muito bem medido no falar e expressar para não desapontar aquela a quem devia o acolhimento como filha em sua casa. A aparente frieza de Guiomar diante da paixão doentia de Estevão não era maldade, mas apenas sinceridade de quem não via convicção emocional em tal espírito ao ponto de despertar um possível sentimento recíproco. Algo que em Luiz Alves encontrou sem muita demora e a tempo de vencer sua submissão sentimental à madrinha e fugir de um casamento indesejado com Jorge. Não sou muito favorável por resumir histórias, mas encanta-me a possibilidade de apresentar o cenário em que o leitor poderá encontrar por si mesmo outras tantas impressões significativas dos personagens desenvolvidos pelo escritor, que em realidade não deixam de expressar os resultados das observações que o mesmo escritor tirou da sociedade em que vivia em seu tempo. Existem várias definições sobre as pessoas que se apaixonam facilmente e doentiamente, mas o nosso personagem destacado desta história, o infeliz Estevão, se encaixaria na definição mais atualizada de erotomania, uma doença psiquiátrica em que o indivíduo tem a ilusão de que a outra pessoa está apaixonada por ela e nutre internamente esta paixão. Claro que Guiomar nunca mostrou isso a Estevão, mas em sua ilusão, ela seria sua natural paixão e deveria ser a luva para a sua mão. O que mostra o quanto a crueza da realidade não ameniza o resultado para os doentes de espírito.

  • Unamuno comenta Dom Quixote

    Tenho uma grande paixão pela obra principal de Miguel de Cervantes, a que o deixou gravado e registrado na história como um imortal da literatura. A obra O engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha é uma pérola que a ninguém é admitida ignorar, seja pela sua fama, seja por - e principalmente- por sua profunda narrativa que coaduna poesia e filosofia. Com toda a certeza, esta obra continuará cativando muitos leitores dedicados e atenciosos com a arte da escrita, uma verdadeira dádiva de Deus aos homens. No início do século XX, outro escritor e catedrático de destacada importância também se dedicou a publicar sobre a obra de Cervantes. Miguel de Unamuno, espanhol como o autor de Dom Quixote, dedicou-se a comentar junto a outros sobre esta magnífica obra quando completava o terceiro centenário de sua publicação. Destes comentários, dois excertos (Vida de D. Quixote e Sancho. Miguel de Unamuno. Ed. LusoSofia, 2005) de Unamuno preciso comentar pelo destaque interessante que o autor dá ao comentar a obra de Cervantes. Logo que se fala de Dom Quixote, para muitos surge a mente a loucura e a demência como característica deste personagem, o que Unamuno quer nos tentar entender como uma profunda injustiça ao personagem e também a Cervantes como criador de tal. Um dos excertos de Unamuno fala do sepulcro de Dom Quixote, numa referência a sua morte, ao fim de sua vida, e consequentemente de suas aventuras mundo afora. Unamuno não deixa de fazer uma pequena crítica aos catedráticos e demais professores, entendo que estes simplesmente o classificam como louco, atitudes de Quixote como atitudes oriundas de uma loucura patológica. Mas será isso mesmo? Será que a fama de louco de Quixote não teria sido criada por estes mesmos “bacharéis” de que fala Unamuno e que criou este rótulo no personagem mais conhecido na história da literatura? Hoje o “quixotismo” para alguns pode ser uma espécie de classificação de demência ou alucinação, mas para Unamuno não se simplificaria tão facilmente nisso. Em profundidade, Unamuno reconhece uma estreita ligação do fim da vida de Quixote com o início de uma solidão, uma solidão que o afasta dos fraudulentos, dos embusteiros, dos ateus, dos criminosos, e o coloca numa “solidão” que chama de Deus. Esta solidão metafórica seria a desejada por Quixote em sua, em sua jornada. A busca pelo sepulcro de Quixote, como que numa saga em busca de um tesouro, em realidade é a busca por Deus em sua existência infinita e imortal. [...]mas não te parece que, em vez de irmos à procura do sepulcro de Dom Quixote, para resgatá-lo dos bacharéis, curas, barbeiros, eclesiásticos e duques, devíamos ir em busca do sepulcro de Deus, para resgatá-lo dos crentes e dos incrédulos, dos ateus e dos teístas, que o ocupam, e esperar ali, soltando gritos de supremo desespero, derretendo o coração em lágrimas, que Deus ressuscite e nos salve do nada? Não parece dissonante um segundo excerto de Unamuno sobre a obra aventurosa de Dom Quixote e seu companheiro Sancho, quando traz o tema da sua doença que leva-o à morte, e do testamento que deixou. Não que o detalhe jurídico do testamento de Quixote seja o mais relevante, mas o conteúdo de seu testamento não é de se deixar passar desvalorizado diante do conjunto da obra. Cervantes faz Dom Quixote assumir no leito de morte que sua vida e jornada foi apenas sonho e loucura. Mas seria isso mesmo? Deve-se entender a poesia na obra, pois Unamuno nos faz entender que o “sonho e loucura” que Dom Quixote confessa se trata mais das realidades efêmeras deste mundo e daquilo que o ser humano pode assumir em vida como fantasiosa realidade, e que no fim não traz a imortalidade que se pensa que poderia conseguir com tal “sonho e loucura”. A vida é sonho! Por este motivo, Quixote deixa em testamento uma cláusula que impede a sobrinha - herdeira de seus bens - de usufruir estes se casar-se com algum homem que leia livros de cavalaria. Para quem não está familiarizado com Dom Quixote, antes de montar em Rocinante e sair estrada a fora em busca de Dulcinéia, sua vida era devotada à leitura de livros de cavalaria. É um grito de Quixote a sua amada sobrinha que fuja daquilo que o fez pelear e lutar tanto contra “moinhos de vento”, que não resultaram na imortalidade e felicidade eterna que romanceia. Por isso, em seu leito de morte, reassume seu verdadeiro nome, Alonso Quixano, o Bom. Como todo mortal, Quixote acorda do sonho que inebriou morrendo para a loucura que o fez sonhar. [...]morre para a loucura da vida, desperta do seu sonho. Entregou o espírito! Para onde foi o Fidalgo Dom Quixote de la Mancha? Unamuno ressalta o término de todo ser mortal na contínua vida eterna de Deus. Quixote cura-se, por assim dizer, da loucura da vida, para despertar para a eternidade que a loucura não podia oferecer. [...]a morte é que nos torna imortais.

  • O Processo de Kafka

    Ainda no ano de 2023, dediquei um tempo para a leitura do livro "O Processo" de Franz Kafka. Este livro tem sido comentado em vários ambientes atualmente por conta da certa similitude com certos acontecimentos atuais em nosso país. Mas o que de fato traz este romance de Kafka? Esta resposta motiva hoje muitos leitores a procurar esta obra. O livro de Kafka traz a história quase monótona de Joseph K., funcionário de um banco que inesperadamente recebe em seu pequeno apartamento dois agentes de justiça, pelo menos assim se apresentavam. Estes sem muitas explicações, o guardam - seria melhor dizer prendem - em seu próprio quarto à espera de um terceiro funcionário da justiça que o viria interrogar. Assim, deste modo inesperado e sem qualquer ato que o tenha provocado, começa o livro em que Kafka nos apresenta um tema para além da mera ficção literária, um tema que assombra as nações democráticas: absolutismo judiciário, ou ditadura do judiciário. Apesar de não ser um livro sobre política em sua intenção primeira, "O Processo" acaba trazendo à baila o tema da preocupante anomalia de um sistema que deveria ser escravo das leis positivas criadas sob a batuta das liberdades individuais, mas que resolve revoltar-se contra seu senhor e assumir a própria existência como única autoridade, mesmo  sobre a própria verdade e realidade. Claro que a trajetória de Joseph K. desenrola-se com muitos pormenores, mas que servem de ilustração e apresentação desta corrupção existencial e funcional de um sistema que não deveria existir por si mesmo, senão em função de algo maior que a si mesmo. Por isso, muitos casos estranhos do nosso tempo acabam ganhando a alcunha de "processo kafkaniano", remetendo a esta semelhança que na obra de Franz Kafka encontramos com a realidade. Uma leitura muito interessante para nossos dias, que serve-nos também para alargar nossos horizontes literários. Ainda no ano de 2023, dediquei um tempo para a leitura do livro "O Processo" de Franz Kafka. Este livro tem sido comentado em vários ambientes atualmente por conta da certa similitude com certos acontecimentos atuais em nosso país. Mas o que de fato traz este romance de Kafka? Esta resposta motiva hoje muitos leitores a procurar esta obra. O livro de Kafka traz a história quase monótona de Joseph K., funcionário de um banco que inesperadamente recebe em seu pequeno apartamento dois agentes de justiça, pelo menos assim se apresentavam. Estes sem muitas explicações, o guardam - seria melhor dizer prendem - em seu próprio quarto à espera de um terceiro funcionário da justiça que o viria interrogar. Assim, deste modo inesperado e sem qualquer ato que o tenha provocado, começa o livro em que Kafka nos apresenta um tema para além da mera ficção literária, um tema que assombra as nações democráticas: absolutismo judiciário, ou ditadura do judiciário. Apesar de não ser um livro sobre política em sua intenção primeira, "O Processo" acaba trazendo à baila o tema da preocupante anomalia de um sistema que deveria ser escravo das leis positivas criadas sob a batuta das liberdades individuais, mas que resolve revoltar-se contra seu senhor e assumir a própria existência como única autoridade, mesmo sobre a própria verdade e realidade. Claro que a trajetória de Joseph K. desenrola-se com muitos pormenores, mas que servem de ilustração e apresentação desta corrupção existencial e funcional de um sistema que não deveria existir por si mesmo, senão em função de algo maior que a si mesmo. Por isso, muitos casos estranhos do nosso tempo acabam ganhando a alcunha de "processo kafkaniano", remetendo a esta semelhança que na obra de Franz Kafka encontramos com a realidade. Uma leitura muito interessante para nossos dias, que serve-nos também para alargar nossos horizontes literários.

  • Orwell e o poder aos porcos

    Você já leu o livro “A Revolução dos Bichos”? Incrivelmente esta pergunta fazia a mim mesmo, e isso por muito tempo. Então tive que tomar coragem e encontrar um tempo para ler esta obra de George Orwell. Nos últimos anos houveram muitos comentários sobre este livro, assim como o livro “O Processo” de Kafka. Os comentários giram em torno da semelhança entre o enredo desenrolado e a realidade social e política em que vivemos atualmente. Mas sobre o livro, não posso comentar nada de realmente novo além daquilo que já se tem falado nos meios de comunicação, a saber: Trata-se de uma alegoria sobre o movimento revolucionário e suas autoritárias artimanhas para elevar-se em poder acima da massa, através da propaganda enganadora disseminada repetidamente e de maneira exaustiva, obtendo a adesão psicológica da massa que naturalmente acaba não encontrando motivos para duvidar, visto a natural tendência da mesma em não investigar a veracidade, reconhecendo ser mais fácil acreditar num “porta voz” do que nos fatos reais que os sentidos podem obter. Uma fazenda sendo tomada à força pelos animais da própria fazenda parece um enredo de trama infantil, mas eleva-se em nível de conhecimento quando reconhecemos nos personagens traços de semelhança com o que de mais brutal o ser humano é capaz de fazer em busca de poder e soberania sobre os demais seres humanos. Não é à toa que a “casta” que toma o poder na fazenda é formada pelos porcos, animais que notoriamente vivem da e na sujeira, e que possuem aparência nada agradável em comparação a outros animais. No romance eles surgem como os animais mais inteligentes da fazenda e por isso deveriam gerir as coisas por lá. Na realidade os “porcos” são os mais astutos e de uma imoralidade sagaz, capaz de trabalhar arduamente para aprimorar a própria capacidade imoral e autoritária sobre seus “escravos” camaradas. O livro A Revolução dos Bichos pode com grande facilidade representar de maneira simplificada a trajetória da ideologia comunista e sua nefasta perseguição à liberdade do ser humano e sua sanha gananciosa por poder. Um poder sem objetivo certo a não o de ser controlador eterno da vida humana, da própria natureza existente, algo que para um bom observador, já é visível nos dias atuais. A evidente manipulação da informação em vista da “honra” revolucionária é um dado impossível de não ser destacado. Em tempos em que se fala tanto de “fake news”, de negacionismo e etc, Orwell nos apresenta a tática mais antiga e conhecida dos autoritários que ainda é muito eficaz, a mentira e a desinformação. Pois a massa humana ainda sabe-se inculta o suficiente para acreditar no portador da notícia e não na realidade diante de seus olhos. Por isso, este livro de Orwell voltou a ser tão procurado e lido nos últimos tempos, para que tenhamos certeza de que não vivemos tempos de humanidade desenvolvida intelectualmente, mas de uma infeliz massa emburrecida intencionalmente, com fins de eterno poder aos porcos.

Valderi da Silva

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