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Unamuno comenta Dom Quixote

Atualizado: há 4 horas

Tenho uma grande paixão pela obra principal de Miguel de Cervantes, a que o deixou gravado e registrado na história como um imortal da literatura. A obra O engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha é uma pérola que a ninguém é admitida ignorar, seja pela sua fama, seja por - e principalmente- por sua profunda narrativa que coaduna poesia e filosofia. Com toda a certeza, esta obra continuará cativando muitos leitores dedicados e atenciosos com a arte da escrita, uma verdadeira dádiva de Deus aos homens.


No início do século XX, outro escritor e catedrático de destacada importância também se dedicou a publicar sobre a obra de Cervantes. Miguel de Unamuno, espanhol como o autor de Dom Quixote, dedicou-se a comentar junto a outros sobre esta magnífica obra quando completava o terceiro centenário de sua publicação. Destes comentários, dois excertos (Vida de D. Quixote e Sancho. Miguel de Unamuno. Ed. LusoSofia, 2005) de Unamuno preciso comentar pelo destaque interessante que o autor dá ao comentar a obra de Cervantes.


Logo que se fala de Dom Quixote, para muitos surge a mente a loucura e a demência como característica deste personagem, o que Unamuno quer nos tentar entender como uma profunda injustiça ao personagem e também a Cervantes como criador de tal. Um dos excertos de Unamuno fala do sepulcro de Dom Quixote, numa referência a sua morte, ao fim de sua vida, e consequentemente de suas aventuras mundo afora. Unamuno não deixa de fazer uma pequena crítica aos catedráticos e demais professores, entendo que estes simplesmente o classificam como louco, atitudes de Quixote como atitudes oriundas de uma loucura patológica. Mas será isso mesmo? Será que a fama de louco de Quixote não teria sido criada por estes mesmos “bacharéis” de que fala Unamuno e que criou este rótulo no personagem mais conhecido na história da literatura? Hoje o “quixotismo” para alguns pode ser uma espécie de classificação de demência ou alucinação, mas para Unamuno não se simplificaria tão facilmente nisso. Em profundidade, Unamuno reconhece uma estreita ligação do fim da vida de Quixote com o início de uma solidão, uma solidão que o afasta dos fraudulentos, dos embusteiros, dos ateus, dos criminosos, e o coloca numa “solidão” que chama de Deus. Esta solidão metafórica seria a desejada por Quixote em sua, em sua jornada. A busca pelo sepulcro de Quixote, como que numa saga em busca de um tesouro, em realidade é a busca por Deus em sua existência infinita e imortal.

[...]mas não te parece que, em vez de irmos à procura do sepulcro de Dom Quixote, para resgatá-lo dos bacharéis, curas, barbeiros, eclesiásticos e duques, devíamos ir em busca do sepulcro de Deus, para resgatá-lo dos crentes e dos incrédulos, dos ateus e dos teístas, que o ocupam, e esperar ali, soltando gritos de supremo desespero, derretendo o coração em lágrimas, que Deus ressuscite e nos salve do nada?

Não parece dissonante um segundo excerto de Unamuno sobre a obra aventurosa de Dom Quixote e seu companheiro Sancho, quando traz o tema da sua doença que leva-o à morte, e do testamento que deixou. Não que o detalhe jurídico do testamento de Quixote seja o mais relevante, mas o conteúdo de seu testamento não é de se deixar passar desvalorizado diante do conjunto da obra.


Cervantes faz Dom Quixote assumir no leito de morte que sua vida e jornada foi apenas sonho e loucura. Mas seria isso mesmo? Deve-se entender a poesia na obra, pois Unamuno nos faz entender que o “sonho e loucura” que Dom Quixote confessa se trata mais das realidades efêmeras deste mundo e daquilo que o ser humano pode assumir em vida como fantasiosa realidade, e que no fim não traz a imortalidade que se pensa que poderia conseguir com tal “sonho e loucura”.

A vida é sonho!

Por este motivo, Quixote deixa em testamento uma cláusula que impede a sobrinha - herdeira de seus bens - de usufruir estes se casar-se com algum homem que leia livros de cavalaria. Para quem não está familiarizado com Dom Quixote, antes de montar em Rocinante e sair estrada a fora em busca de Dulcinéia, sua vida era devotada à leitura de livros de cavalaria. É um grito de Quixote a sua amada sobrinha que fuja daquilo que o fez pelear e lutar tanto contra “moinhos de vento”, que não resultaram na imortalidade e felicidade eterna que romanceia. Por isso, em seu leito de morte, reassume seu verdadeiro nome, Alonso Quixano, o Bom. Como todo mortal, Quixote acorda do sonho que inebriou morrendo para a loucura que o fez sonhar.

[...]morre para a loucura da vida, desperta do seu sonho.

Entregou o espírito! Para onde foi o Fidalgo Dom Quixote de la Mancha? Unamuno ressalta o término de todo ser mortal na contínua vida eterna de Deus. Quixote cura-se, por assim dizer, da loucura da vida, para despertar para a eternidade que a loucura não podia oferecer.

[...]a morte é que nos torna imortais.

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