José Saramago, escritor português, ganhador de uma das edições do Prêmio Nobel de Literatura, escreveu uma obra que revela a sua visão da humanidade em todas as dimensões. A obra Ensaio sobre a Cegueira traz uma história fantástica em seu início, mas que revela ao passar as páginas a verdadeira e crua realidade que o livro deste escritor português quer nos desnudar. Para muitos esta história surreal de Saramago nos leva a derramar sentimentos variados por cima de cada página à medida que desenrola-se a desventurosa saga destes indivíduos acometidos por misteriosa cegueira inaudita.
Sem desejar detalhar a trama, gostaria de hoje apenas comentar esta facilidade de homens como Saramago em transportar para as linhas escritas a provocação mais desconfortável que os leitores poderiam esperar. Esta obra que ora cito, assim como tantas outras deste escritor, revelam momentos de profunda provocação, momentos em que verdadeiramente desejamos parar de ler por não acreditar que tal coisa pudesse estar acontecendo. Ficou-me especialmente gravado na memória a animalidade que quase espontaneamente se criou no “manicômio” onde se reuniram todos os cegos acometidos do “mal-branco”, e especialmente o momento em que um grupo tão cruel quanto os que os trancaram neste verdadeiro manicômio, usurparam o direito de todos por comida e as vendiam por qualquer coisa de valor, chegando a animalesca e sórdida imposição de favores sexuais das mulheres em troca de alimento. Neste momento, como se já nesta altura não se tivesse percebido a animalização do indivíduo humano, verifica-se a grande barbárie em que sempre a natureza humana pode chegar.
O leitor facilmente perceberá como em uma vitrine a frente, onde poderia estar a passar as mais variadas atitudes desprezíveis do ser humano quando qualquer espécie de privação cai-lhe sobre a existência. O exemplo da fome parece ser claro no episódio que acabo de mencionar, mas a ausência inesperada de um sentido como o da visão, não poderia resultar em tamanho colapso da civilidade adquirida pela cultura humana após séculos de desenvolvimento racional acerca do próprio convívio social.
Em Ensaio sobre a Cegueira, podemos encontrar muitos elementos de reflexão e discussão em torno da instabilidade que aparentemente só faz crescer na formação do ser humano, resultando em atitudes desproporcionais, escravocratas, imorais e animalescas sob as primeiras situações de privação e cerceamento. A atitude dos cegos enclausurados em um edifício, sem o menor suporte de quem os lá colocou, excetuando o fornecimento precário de alimento, já é primeira demonstração destas situações desproporcionais e irracionais, coisas que talvez já tenhamos vivenciado de alguma maneira em algumas crises sociais recentes. A facilidade com que os soldados atiraram para matar em indivíduos doentes, levanta a questão da subordinação a ordens sem consciência moral e baseadas no medo, tanto da hierarquia quanto da suposta ameaça sanitária. A questionável lei de sobrevivência que fez surgir o grupo criminoso de entre os cegos para arrecadar benefícios além da própria alimentação, impedindo que os demais cegos se alimentem com a comida destinada a eles, demonstra mais uma vez a frágil estrutura moral e humana com a qual lidamos quando o assunto é a grande massa da humanidade.
Não creio que Saramago seja amado por todos, mas esta obra em específico deste escritor português, revela sua capacidade incrível em despertar no leitor os mais variados sentimentos em busca de uma possível reflexão sobre nós mesmos.
Artigo publicado originalmente na 17ª edição do informativo mensal O Leitor, disponível em www.oleitor.info .
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